Justiça de alto risco

Fonte: Jornal do Sincor-SP, março 2013, artigo de Gabrielle Rossa, advogada especialista em Processo Civil, integrante do escritório Rayes Advogados.

Uma pesquisa memorável realizada pelo Ibope, em 2011, por encomenda da Confederação Nacional de Seguros (CNSeg), chegou a algumas conclusões relevantes sobre o mercado segurador. Dentre elas, a de que quatro em cada dez segurados brasileiros isso mesmo, quase a metade - estariam dispostos a cometer fraudes para se beneficiar indevidamente de suas apólices, tendo como motivação para isso a mais pura sensação de impunidade.

Não por coincidência, são visíveis as barreiras impostas às seguradoras para a comprovação de fraudes por parte de seus clientes. Muitas vezes, apesar de vários indícios dessas irregularidades, os juízes mostram-se inclinados a reconhecer a pseudo-hipossuficiência do segurado frente ao segurador, ao invés de seu provável dolo. Assim, condutas que indicam a ocorrência de, no mínimo, agravamento do risco são relevadas e permanecem impunes, chegando até a serem premiadas com a concessão judicial da indenização prevista em contrato.

O ônus decorrente dessa alarmante realidade recai, sem dúvida, sobre a seguradora, mas também prejudica a sociedade de uma forma geral, ao onerar todas as apólices. Também afeta, é claro, o próprio mercado segurador brasileiro, que ainda tem muito território a conquistar, mas acaba vendo sua expansão natural reprimida por um cenário de tal ordem preocupante.

Se compararmos o modelo norte-americano com o nosso veremos isto mais claramente ainda. Quando falamos em seguro de vida, por exemplo, salta aos olhos o fato de haver por lá sete vezes mais segurados, segundo números de 2010 obtidos pela maior resseguradora do mundo, a Swiss Re. Diferenças assim se devem não só a fatores culturais, econômicos e geográficos, mas também à segurança jurídica oferecida às empresas da área, que naquele país podem calcular com tranquilidade os riscos das apólices, certas de não serem compelidas a pagar indenizações fraudulentas.

Prova disso é o período inicial de dois anos (Contestability Period), durante o qual a seguradora tem todo o direito de investigar minuciosamente as informações prestadas pelo segurado, caso seja acionada neste intervalo. De conhecimento geral, a norma consta nas apólices e é honrada nas decisões judiciais.

Na maior parte dos estados norte-americanos, ainda que a informação omitida ou prestada parcialmente se desvincule à causa do sinistro, o pagamento é negado e com total respaldo dos tribunais.

Ou seja, naquele mercado todos sabem o que esperar ao contratar uma apólice e por isso o preço é justo para todos, pois as empresas têm segurança de que só pagarão aos segurados realmente merecedores.

Isso aumenta o número de apólices comercializadas e confere à sociedade a garantia de ter suas famílias protegidas, um considerável fator de desoneração para o próprio estado. Já no Brasil, além de não haver período contestatório determinado por lei, mesmo que comprovado que o segurado escondeu informações importantes, mentiu ou agravou de alguma forma o seu risco, o Judiciário compele as empresas ao pagamento incondicional da indenização.

Em caso de doença preexistente, o argumento recorrente do segurado para omiti-la é a falta de exames médicos prévios realizados pela seguradora, algo que, diga-se de passagem, elevaria ainda mais o custo de sua apólice. Imaginemos, então, algo aqui semelhante ao que ocorreu com o ator norte-americano Heath Ledge, vítima de overdose apenas sete meses após contratar um seguro de vida de US$ 10 milhões em benefício da filha, de dois anos. O fato de não ter informado previamente seu histórico de abuso de drogas levou a seguradora ReliaStar Life Insurance Co a negar o pagamento da indenização.

A família do segurado ajuizou uma ação, mas só conseguiu pequena parte da cobertura, mesmo assim porque a companhia propôs um acordo, nitidamente preocupada com a possíjvel repercussão negativa do caso na mídia. Se fosse aqui, a demanda levaria uma década para ter um final e, muito provavelmente, a seguradora seria obrigada a pagar o valor integral, sob a alegação de boa-fé do artista ao omitir parte do seu perfil. Aliás, todos nós pagaríamos por isso, pois o prejuízo da companhia seria repassado em algum grau aos proponentes de novas apólices.

É clara, portanto, a necessidade premente de uma atuação mais enérgica do Judiciário brasileiro no tratamento de questões assim, sejam elas em torno do segmento de seguros ou qualquer outro, onde a suspeita de protecionismo possa ser levantada. Ao deixar de lado seu histórico paternalismo, passando a punir todo e qualquer agente fraudulento com o rigor previsto nos termos da lei, certamente permitiria a evolução de vários setores, proporcionando com essa conduta motivos concretos para a nação inteira comemorar, e não apenas verdadeiras castas, hoje praticamente inocentadas de antemão.